segunda-feira, 26 de março de 2012

Rascunho


Faz mais de rio que não vejo o sonho.

Quando eu fazia arte na existência, meu pai castigava infância com vara de marmelo.
Meu pai tinha uma voz de trovão.
Hoje tem doçura de arrebol.
Cheira à terra molhada a nostalgia do meu pai.

O segredo de mim é vário. O do meu pai é noite.

Sou poeta, caso perdido.
Desisti de mim quando borboleta escreveu azul na minha mão.
Fui me sendo menos quando me vi de pé na fila de espera do meu sorriso e quando musa me cantou um desapego fúnebre com paramentos de abismo escolhido de girassóis.
Poesia de ônibus faz mais música que vento em árvore.

Palavras me escravizam de dezembro.

sábado, 10 de março de 2012

Caminhada


Passos na linha do presente.
No passado ficou só um mundinho caminhado de retratos, sementes e palavras.
Tem muito mais de mim na travessia desse verso.
Palavras me assumem mais do que cirandas.
Nelas desempenho lírios e respiro presença.
Eu sofro de tanto.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Mesa posta


Mesa posta.

Pratos tristes na mesa para um jantar acostumado de gala e requinte.
Os convidados, preferidos de dinheiro, se entreolham e se sorriem em redor da mesa se cumprimentando num clima protocolar de satisfação enquanto que em suas mentes o que se vê é apenas uma necessidade burguesa de bajulação e puxa-saquismo.
Na sala de jantar uma decoração retrô agradável que dá pra medir com régua, garfos e cortina.
Móveis sérios de madeira antiga, estilo século XIX, que pareciam contar histórias de gerações passadas esquecidas nas gavetas, prateleiras e nos detalhes suspeitos e sinuosos da madeira trabalhada.
Livros raros nas estantes, volumes completos de enciclopédias e clássicos da literatura somente lidos pelo dono da casa.
Tem um ar pedante na gargalhada funesta e esganiçada da anfitriã e dá pra sentir tristeza no sorriso de seu marido, homem de negócios, rico, mas que nunca foi realmente feliz.
Seus 3 filhos já casados moram longe e ele quase nunca vê os netos, únicos que o beijam e abraçam com amor transparente e desinteressado.
Ele sente falta do desinteresse.
Sente falta de quando não era tão rico e conhecia seus verdadeiros amigos, que ficaram no passado, na sua terra de origem.
Hoje ele só tem uns duvidosos amigos do ambiente de trabalho, com suas esposas atrás de suas maquiagens tentando esconder a crueldade do tempo, que é implacável.

– Será que estariam aqui se eu não fosse rico?

Ações da bolsa, mercado financeiro, especulação imobiliária... É o que se fala na mesa, mas o homem, cansado disso e com a cabeça distante desse assunto, só pensa em cochilo na rede, fumar um cigarro, pisar descalço no chão de terra e procurar ninhos nos buracos da casa velha do sítio no interior.

O jantar termina, todos se levantam.
Os anfitriões acompanham os convidados até à porta e se despedem com cumprimentos formais sem ainda se desligarem completamente dos assuntos que permearam quase toda a reunião.
Os carros vão sumindo na estrada, mas da porta permanecem ainda por um tempo os acenos.
Com um olhar de cansaço o casal se retira pra dentro de casa.
A mulher, já sem a maquiagem usada no jantar, dorme com facilidade e rapidez enquanto o homem ainda permanece um tempo sentado na cama folheando as páginas de um Kafka, único que estava ao alcance de sua mão.
O silêncio permanece madrugada adentro quando o homem se levanta e caminha pra fora de casa até os fundos dirigindo-se para um barraco onde guardavam tralhas velhas e ferramentas.

Há quem diga que atrás do sossego passa um rio com águas de desespero que nos leva suaves e tortos pra um oceano de visões e demência.
E o homem, levado por essa correnteza, num turbilhão de calmaria que deságua atrás da casa, lá dentro se tranca.
E rasgando a madrugada, despertando o latir dos cães, um tiro na noite.

sábado, 3 de março de 2012

Azul


Fora de mim o azul!
Me deixe chorar no cinza!

Nas páginas desse livro tem um fogo azul com chamas de existir que penetra e se incorpora no antigamente com versos sem nome de outrora.
Curioso o azul. Ele me encanta com a beleza úmida e pueril de seu som.
Faz música de céu nos olhos da menina e oceano de borboleta nos amores do rapaz.

Azul é cor de sujeito que pisca os olhos pra noite e cochicha estátuas nos ouvidos do vento.
É cor de quem tem voz de anil e se usa de ignorâncias pra compreender a língua dos rios.
Meu verso é azul por natureza. É azul de silêncio e vileza.
Fui amaldiçoado pela música dessa cor.
Eu grito, choro, sequestro fontes de outra cor... Mas no fim sou arrebatado por borboletas ridículas de linguagem e profundas de organismo que sem permissão me afogam em águas irresponsáveis de vigor.

Outro dia vi um abandono azul da altura de uma tarde, tal que um pássaro podia pousar pra fazer ninhos nele.
Dei as costas pra visão e percebi que sou mais um sujeito inútil que experimenta as cores pra ensinar sorriso e jardins.
Já bebi demais dessa nascente que me deságua despedida e lábios.
Chega disso.
Eu quero ser caduco de aquarela.