Mesa posta.
Pratos tristes na mesa para um jantar acostumado de gala
e requinte.
Os convidados, preferidos de dinheiro, se entreolham e se
sorriem em redor da mesa se cumprimentando num clima protocolar de satisfação
enquanto que em suas mentes o que se vê é apenas uma necessidade burguesa de
bajulação e puxa-saquismo.
Na sala de jantar uma decoração retrô agradável que dá pra
medir com régua, garfos e cortina.
Móveis sérios de madeira antiga, estilo século XIX, que
pareciam contar histórias de gerações passadas esquecidas nas gavetas, prateleiras
e nos detalhes suspeitos e sinuosos da madeira trabalhada.
Livros raros nas estantes, volumes completos de
enciclopédias e clássicos da literatura somente lidos pelo dono da casa.
Tem um ar pedante na gargalhada funesta e esganiçada da
anfitriã e dá pra sentir tristeza no sorriso de seu marido, homem de negócios,
rico, mas que nunca foi realmente feliz.
Seus 3 filhos já casados moram longe e ele quase nunca vê
os netos, únicos que o beijam e abraçam com amor transparente e desinteressado.
Ele sente falta do desinteresse.
Sente falta de quando não era tão rico e conhecia seus
verdadeiros amigos, que ficaram no passado, na sua terra de origem.
Hoje ele só tem uns duvidosos amigos do ambiente de
trabalho, com suas esposas atrás de suas maquiagens tentando esconder a
crueldade do tempo, que é implacável.
– Será que estariam
aqui se eu não fosse rico?
Ações da bolsa, mercado financeiro, especulação
imobiliária... É o que se fala na mesa, mas o homem, cansado disso e com a
cabeça distante desse assunto, só pensa em cochilo na rede, fumar um cigarro,
pisar descalço no chão de terra e procurar ninhos nos buracos da casa velha do
sítio no interior.
O jantar termina, todos se levantam.
Os anfitriões acompanham os convidados até à porta e se
despedem com cumprimentos formais sem ainda se desligarem completamente dos
assuntos que permearam quase toda a reunião.
Os carros vão sumindo na estrada, mas da porta permanecem
ainda por um tempo os acenos.
Com um olhar de cansaço o casal se retira pra dentro de
casa.
A mulher, já sem a maquiagem usada no jantar, dorme com
facilidade e rapidez enquanto o homem ainda permanece um tempo sentado na cama
folheando as páginas de um Kafka, único que estava ao alcance de sua mão.
O silêncio permanece madrugada adentro quando o homem se
levanta e caminha pra fora de casa até os fundos dirigindo-se para um barraco
onde guardavam tralhas velhas e ferramentas.
Há quem diga que atrás do sossego passa um rio com águas
de desespero que nos leva suaves e tortos pra um oceano de visões e demência.
E o homem, levado por essa correnteza, num turbilhão de
calmaria que deságua atrás da casa, lá dentro se tranca.
E rasgando a madrugada, despertando o latir dos cães, um
tiro na noite.