domingo, 29 de janeiro de 2012

O velho


No princípio era a palavra.
Daí veio a dor, o desejo, a saudade e o verso.
Poema verdadeiro pra ser de mentira tem que ter um pouco de tarde nas suas margens, um pouco de preguiça no seu egoísmo e um pouco de Deus nas suas pétalas.

Do outro lado da pétala tem um velho sentado que liga o rádio pra ouvir o quando.
Nele (no quando), o velho enxerga a voz rouca dos carros que passam na rua e sente o cheiro vazio dos passos acelerados da cidade.
Ele tinha princípios harmônicos sem limites de vento.
Enxergava o após sem o antes e nos seus ouvidos a natureza sussurrava uma melodia boreal de lágrimas.

Ele era como um pescador relaxado de premissa e lamúrias.

O velho da pétala tinha no seu abandono uma vocação esquecida de chuva.
Carregava no bolso uma foto quase apagada de pessoas que não eram e um livro ébrio com poemas de amor com soluços e de angústias presentes que sofriam de aurora.
Seus versos molhavam de desapego a amarga dor de quem os ouvia e tatuava de fascínio a esperança solitária dos que por ele passavam.

Dava pra ver o silêncio fazer pegadas nas páginas do velho.

Havia uma ansiedade lapidada de tempestade e ruínas no caminho do velho.
Ele cantava um hoje impossível de flores com crianças em roda.
Dava nome ao suspiro, apelidava os minutos.
Limpava seu coração de nuvem com plumas brancas de inventar.
E na pétala vazia de infinito, amor e descobertas o velho a sorrir morria em casulo.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Encantamento


Borboleta deu pra voar no mesmo dia que sabiá criou canto.
No mesmo dia que manhã fez orvalho e noite estrelada fez luar.
No calendário da poesia esse dia é feriado
É o dia do encantamento.

Barulho


O som da rua parecia que nem uma barriga que ronca em fome.
Veio a noite, o silêncio,
e a rua engoliu todos os carros, pessoas e palavras.
Ela ficou saciada.

Aglutinação


A palavra cabelo parece a união da expressão “cabe no belo”.
A beleza do teu cabelo é assim
Ela cabe no belo.

No muro


No muro da escola tem o desenho de um cervo rindo de uma borboleta.
A borboleta, aborrecida, deu as costas e foi embora.
Tem também uma abelha simpática que me olha parecendo ter gostado de mim.
O macaco serelepe brinca no balanço.
A cobra enroscada na árvore é mansinha e nem tem veneno.
O sapo é curioso: parece que seus olhos se apagaram no tempo.
O muro da escola é assim.
Nele ninguém se lamenta e nem coloca dinheiro em buraquinhos.

Causo de fulano e de meninos


Fulano conta que menino rico foi passear na fazenda e levou brinquedo caro de cidade.
Menino pobre achou bonito brinquedo de menino rico, todo de plástico, brilhante e colorido.
Menino rico emprestou carrinho de pilha pra menino pobre.
Fulano conta que menino pobre amarrou barbante no carrinho e saiu puxando ele quintal afora.

Vento


Eu vento palavras num caderno de mentira que é meu coração em conflito.
Eu conflito verbos de manhã que é pro mundo girar melhor do lado de fora.

Pra me aquecer de um calor frasal eu me reverbero de noite trajando versos nus
e me deito de tarde numa imagem rasteira de céu com cheiro de livro novo.

Moro na Rua Bobagem.
Casa boba sem jardim numa vila amarela e mariposa.
(Nessa rua tem sempre um diplomado em razão que instrui pessoas de brinquedo numa praça.
Segundo ele e todo seu prestígio acadêmico, não existe essa história de ventar palavras e muito menos isso de o mundo girar melhor do lado de fora.)

Ele me tem como um idiota varrido.

Mas Deus me abençoou varrendo de mim a razão e me fazendo enxergar que esperança que se molha de azul vira flor, vira poema.

E essa bênção veio com água, pomba, língua, fogo e estrofes.

Tem vento demais no azul de Deus.

Tem brisa sagrada e uma bíblia de rio na estante arborizada e empoeirada da minha existência.

Quando me afasto de mim posso pegar com as mãos a tarde.

Que Deus tenha misericórdia da minha inconstância e do meu desvario verbal.
Pois tenho a fraqueza de me excitar com a fornicação das palavras e o gozo do cruzamento de girassóis com horizontes e inocências com borboletas.

E mergulhado nessa promiscuidade letral, rezo a Deus pra que eu seja condenado às profundezas do poema em ventania ou ao purgatório desacostumado das palavras sem gramática.

Desciência


Minha lógica é a de seguir a inconstância,
o improvável.

E minha ciência se confirma no hipotético,
no imagético.

O meu 2 + 2 tem perfume de um 4 azul.
E meu corpo em repouso é inerte de uma existência frasal.

Sou cientista do dessaber, observador do que não existe.
Eu passo horas registrando o que não existe.
Até já fui onde não existe e me perdi na hora de voltar.
Lá onde não existe, sabiá palmeira o canto que sai da terra.

Sou concluído de loucuras, concursado pra insanidade.
Minha razão me desorgulha. Sou letrado em tropeços verbais.
Meu dicionário tem verbetes molhados e meu microscópio serve pra ver despropósitos no meu olho.
Eu faço alquimia nas palavras (eu desvirgino a palavra até ela se orgasmar pra poema).
Estou em estado de fusão poética: minhas palavras se desmancham no papel e inúteis que são, se perdem num poema desimportante.

Poema solto


I

No meu coração tem um horizonte do tamanho do azul.

Nele moram pessoas, palavras e promessas
que se cumprem de girassóis e de sonhos.

O meu despropósito é o de apenas ser. O que vem depois já não é.

Lágrima de poesia tem cheiro de terra molhada.

O olho do meu futuro frequenta lugares exercidos de riachos.

Sou mais inútil quando chove na minha esperança.

Eu monto frases tortas pra endireitar o meu ser.

Uma imagem saltou de minha palavra.

E o céu de um sapo é da altura do seu pulo. (Eles visitam Deus uma vez a cada três pulos)

Atrás da minha casa tem um ninho preenchido de existências canoras.

II

Tem coisas que fazem da minha vida um mundo maior
e que contribuem para o meu aumentamento coisal.

Exemplos: a sombra fria e decadente da minha saudade,

o murmúrio vegetal das minhas existências,

o sorriso claro e amanhecido do meu quintal

E o gosto desenvolvido e abandonado da minha tarde.

Tudo isto, além das tristezas que passeiam lá fora, são matérias-primas pra meus versos,

epifanias no meu lápis.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Andorinha

Toda vez que menino vinha pra mudar a cor do dia
Outono chegava antes e mudava na frente.

Andorinha se ria e dizia que pra menino mudar a cor do dia
Era de profunda importância que ele se assumisse poeta e que murmurasse trejeitos de março.

Andorinha tinha sabedoria outonal e um entusiasmo primaveril
Viajava lá pelas bandas de poema e pelos confins imaginários do menino.

Quando voltava na primavera, sempre trazia consigo histórias de margem de rio com meninos
E de meninos que faziam de sua infância iluminuras molhadas de rio e de orvalho.

Aquele menino se inquieta de mim.
Se inquieta de si e de suas existências chuvosas.
Andorinha se ri e voa pra dentro do menino pousando nos galhos do seu pé-de-agora.

Feliz é menino que tem seus agoras repletos de passarinho.
Pois tornam-se como ninhos preenchidos de um silêncio perfumado e canoro.

Ciclo

Meu lema é sombra.
Anseio por um presente vão.
Desejo de um hoje pleno considerando a inexistência do amanhã.
E é nessa angústia e regozijo corpóreo que me celesto e celesto a grandeza de pensar com o corpo.
É no corpo que me transfaço.
É no corpo que transvejo.
Transvejo o mundo percebendo a graça me despir de teorias e conceitos tornando-me um nada inútil e pleno.

Como é bom ser inútil!
Sem pudor, abraço a filosofia do nu e do nada,
Pois assim me refaço em poesia.

Caminhando descalço contemplo minha condição de terra
E transcendo a profundezas cada vez mais altas.
Aquele pedaço de chão esperou anos para ser pisado por mim.
Mesmo o chão contempla sua condição de existir.
Chão que engole nossos mortos,
Mas que nos presenteia com árvores e flores.

É assistindo a iminência da morte que vejo que a vida nunca morre.
Quem morre somos nós, indivíduos.
A vida nem nasce e nem morre.

Ela renasce em nós.